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DOLORES O'RIORDAN NOS DEIXOU


Salvador, 1991.

A capital baiana que nunca teve uma Fluminense FM fazia o pessoal se virar em garimpar discos, artistas e imprensa de rock alternativo.

O coronelismo radiofônico até hoje existente não deixava que houvessem rádios de rock com pessoal realmente especializado e ligado ao gênero.

Com isso, os alternativos corriam para lojas de discos e buscavam nutrir as informações comprando revistas importadas.

Nessa época, a Bizz decaiu e as informações musicais beiravam para o superficialismo pragmático (redundância, o pragmatismo é a "cultura do superficialismo", o "básico do básico do básico etc").

E aí, quando o extinto periódico inglês Melody Maker aparecia, com baixíssima tiragem, a concorrência era acirrada e os poucos exemplares desapareciam.

Em 1991, quando eu e meu irmão passeávamos pelo Aeroporto Dois de Julho, fomos à banca e nos interessamos em pegar um exemplar disponível da Melody Maker, de maio daquele ano.

Na capa, Manic Street Preachers, se não me engano.

Mas havia matérias com Happy Mondays, resenha de Sea Monsters do Wedding Present e a divulgação de uma demo de um grupo irlandês com uma vocalista gatinha.

Esse grupo era o Cranberries, ainda pouquíssimo desconhecido do circuito Irlanda-Reino Unido (Irlanda e Grã-Bretanha têm um mercado musical unificado). Imagine, então, fora dali.

Apenas alguns anos depois uma balada (música lenta) chamada "Linger", passava a ser sucesso nas rádios.

O Cranberries se destacava pela bela voz de Dolores O'Riordan, uma garota atraente que em boa parte do tempo aparecia de cabelos curtos.

O grupo foi um dos poucos vindos da Irlanda-Reino Unido que, na ressaca pós-grunge e pós-poppy punk, onde prevaleciam os estadunidenses, que puderam fazer sucesso no mundo de 1997.

Era uma forma tardia de compensar o boicote que a mídia não-britânica fez à geração shoegazer, pois até hoje nomes como Ride, Wedding Present e Wonder Stuff são desconhecidos no Brasil.

Em 1997 se ascenderam os irlandeses Cranberries, acompanhando o Oasis, o Blur, o Pulp e o The Verve.

Era uma época em que, diante da melancolia pós-Margareth Thatcher e pós-George Bush (pai e filho), os EUA e o Reino Unido passaram a priorizar faixas melancólicas no rock alternativo.

Nos EUA, o R. E. M. passava a gravar faixas melancólicas num clima distante do entusiasmo dos primórdios da "trilogia" Chronic Town-Murmur-Reckoning.

Oasis passou a gravar canções mais lentas, o Blur veio com canção com orquestra, "The Universal", e mesmo o Pulp e o The Verve pouco estavam para faixas vigorosas como nos anos 1980.

Cranberries também priorizava faixas lentas, e só depois partiu para sonoridades mais rock, como em "Salvation".

A discreta Dolores O'Riordan se soltava mais, e parecia sair daquele jeito doce mas melancólico. Eventualmente ela também tocava violão e guitarra.

Mesmo assim, em toda a trajetória os Cranberries haviam tido uma trajetória de competência e talento, dando conta do recado nas apresentações ao vivo.

A banda acabou há anos mas depois se reativou e Dolores estava fazendo sessões de gravação nos últimos dias.

Ela tinha transtorno bipolar e estava aparentemente seguindo sua carreira musical normalmente. Até que ela foi encontrada morta, sem motivo conhecido até agora.

Lamentavelmente, ela era uma das poucas mulheres famosas nascidas em 1971 que estava solteira. Dolores havia se separado do pai de seus três filhos, o empresário do Duran Duran, Don Burton.

As mulheres de 1970-1971, sabe-se, são muito "chatas" de ficarem "carregando" casamento. Difícil eu encontrar uma mulher da minha idade (também nasci em 1971) para namorar.

Numa época em que o rock está em baixa e muitos músicos estão morrendo, a perda de Dolores O'Riordan só aumenta ainda mais esse quadro sombrio.

No Brasil, isso piora as coisas, num momento em que o rock se perde no corporativismo pragmático e no reacionarismo ideológico.

Mas isso se complica ainda mais quando o ultracomercialismo do "pop brasileiro" (Anitta, Pablo Vittar, MC Kevinho, Marília Mendonça, Jojo Toddynho), a mais nova geração do brega-popularesco, domina ainda mais o gosto musical dos jovens brasileiros atuais.

Ficam aqui meus lamentos ao falecimento prematuro de Dolores O'Riordan e a lembrança daquela gata de 20 anos que, com sua banda, divulgou uma demo resenhada pela saudosa Melody Maker.

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